Decadência


O cheiro era como o de uma lata 
Suja, de cerveja quente
Cheia de cigarros apagados 
Amanhecendo no chão gordurento de um espeto de rua 

Não pode ter havido banho hoje
Talvez nem ontem
Exalava o fedor de entrecoxas suado 
De barba oleosa, azeda, boca suja 

Era um bafo de dentes podres
Exalando morte e luto 
Uma respiração espessa 
Que me dançava a bile de baixo acima

Me pergunto se passa
Depois de trinta anos casados 
Se o cheiro some
Ou se o que some é o cheirar de boa viagem 

Se vai a espera pelo afago matinal? 
O acordar com o doce beijo do amado?
Quando o que se tem é um ser vil e catinguento
É o pesadelo, o medo, o desespero 

Um odor tão pungente emanava da pele
Que pensei que mesmo o cheiro não o aguenta
E foge em desespero para as minhas narinas
Descendo pegajoso até o amargo da língua 

Lembrei da criança arteira
Chupando uma moeda para saber como era 
Sentindo o gosto ocre do metal
Que lhe cavou cova na memória gustativa 

É o gosto da decadência 
Do descaso e da sujeira e dos cigarros
E da cerveja choca e dos bares sujos
Do fim de festa, da vergonha 

Faço uma breve prece para meu estômago revolto 
Em vias de benção, ganho o revés 
De mais duas horas desse cheiro
Pagas em hora de voo noturna

Espero ansiosa a chegada ao hotel 
Ao banho e ao gargarejo mentolado 
Para lavar do corpo e da alma 
O alto custo de trabalhar com gente suja

Deus, me ajude 
Mais uma vez, só hoje, só pra sempre
Queria acordar ao lado do meu amado

Com seu perfume verde, limpo e fresco
Sabor de sol, de caramelo quentinho 
E beijos com gosto de amor


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