Primeiro abandono
A primeira vez que entendi abandono
Não foi quando meu pai saiu de casa
Me lembro bem desse dia
Lembro de estar mais calada que o normal
Que as últimas brigas foram mais ferozes que o normal
Que o mundo nos olhava com algum receio
De manter o olhar em nós por tempo demais
E ver algo trágico e inevitável atrás da nossa porta
Nesse dia jantamos todos juntos, parecia cedo
Mamãe estava muito quieta e olhava pra baixo
Papai tinha aquele olhar altivo de dono do mundo
Da irmã, não me lembro
E havia uma bolsa de lona creme enorme
Atrás da mesa, cheia. Algumas outras bolsas
Perguntei o que era aquilo tudo
Mamãe disse que papai ia viajar
Não sei do resto da conversa
Sei que por meses eu perguntava quando ele voltaria
Que a resposta era sempre vaga
E que os presentes de dia dos pais ficavam guardados por anos
No fundo do guarda roupa, até que mamãe decidisse usá-los
Ou sumi-los
Ali eu não aprendi sobre abandono
E sim sobre esperar sem perder a fé
Mas esperar por alguém que não volta
E que se voltar, pior, não é boa lição pra criança
Porque às vezes a gente cresce
E fica pra sempre esperando, inútil
Por quem sabe o nosso endereço
E só não vem porque não quer vir
Ali eu aprendi a ver amor onde há desinteresse
E isso é bem ruim, mas ainda não é abandono
Hoje encontrei o primeiro abandono que perdi
E, que engraçado, nem foi meu
Estava voltando da escola com mamãe e a Thati
Caminhávamos em alguma rua movimentada de Copacabana
Uma filha pequena em cada mão nas calçadas terríveis
O barulhinho do salto torturando pés de mamãe
Minha irmã já nasceu tinhosa, não sei o que motivou a briga
Sempre tinha briga, desce sempre
Eu sei que dessa vez ela bateu o pé e disse que não ia
Então fique aí, respondeu minha mãe
E ela ficou
Eu lembro de cada passinho trôpego de pé de criança
De tentar não olhar pra trás
De entrar um segundinho no olhar dos pedintes
“Isso é abandono” ecoa minha memória
“Isso é abandono” brilhava cada olho vazio de peixe
Com as mãozinhas esticadas por moedas
“Eu fui deixado aqui”
Em frente ao sinal, seria o adeus
Uma vez atravessada aquela rua, nunca mais
Nunca mais uma briga, um chocolate na Páscoa
Uma irmã mais velha pra me culpar e cuidar
Eu só a veria quando passasse mais uma vez por aquela rua
Os olhos de peixe morto, a mãozinha esticada
E eu gritei e chorei e voltei correndo
E pedi por favor pra ela voltar
E pedir desculpas e estudar mais
E trabalhar e obedecer e cuidar e fazer
E dar orgulho e nunca nunca mais reclamar de nada
Porque quem reclama demais é deixando na rua
Quem desobedece não tem mais casa pra voltar
Não tem mais mãe nem mais irmã nem mais amor
E voltamos às três pra casa de ônibus
Eu abraçava a Thati como se o mundo fosse acabar
Porque acabou ali
Depois desse dia, aprendi que amor é condicional
Que a sua casa não é sua
Que todo o castelo de areia em volta só se sustenta
Se você for boazinha
Se for obediente
Se arrumar, cozinhar, costurar
Se souber ler e escrever e cantar
Conversar sobre todos os assuntos, der orgulho
Fizer as compras, pagar as contas, cuidar de todos
Que o amor vem pela utilidade
Ou vai embora
Nunca mais desobedeci (ou é como eu me lembro)
Nunca mais dei trabalho
E principalmente
Nunca mais confiei na minha mãe
Nunca mais tive lar
Sem perceber, me tornei eu a pedinte
Uma diferente, como os palhaços do sinal
Que dançam e pulam e entretém
Por uma moeda, qualquer coisa
Uma migalhinha de amor
Um cantinho de lar pra eu me encostar as vezes
Chorando meu abandono a cada sinal verde
Espero que à partir de hoje
Desse choro de hotel, pelo medo certo
Eu me dê forças pra lembrar que sou adulta
E que não preciso mais temer
Que já sou só eu nesse mundo tão grande
E que só morro à míngua se quem me abandonar for eu
Que a vida não é útil e o amor também não precisa ser
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