Curador, Curandeira


O inconsciente é um museu de lembranças 
Nos armários, eu vi um museu de coisas 
Visitei todos os dias 
Um ingresso tão caro, pago em dor 

O curador dizia que nem via
Como se nada existisse lá 
Mas mexia em tudo, sabia cada lugar 
Naquela instalação desintimista

O show do vazio interior preenchido de tralhas
Fazia piada, reclamava
Mas não jogava nada fora 
Sem intenção de mudar nada de lugar

O museu não tinha nome, até que um dia teve
“Você me cura” eu ouvi dele
Segurei uma lágrima na mão 
E acreditei que meu coração caberia naquele altar 

Eu, curandeira, acreditei
Que pra curar a dor era com amor
Que o amor espanava a poeira
E com tudo limpo ele poderia me ver

Mas o curador fechava os olhos
Falava com as coisas em segredo
Elas me sussurravam depois, eu ouvia
Mas achava que era só o eco do meu medo 

Um museu do lixo, de dor
Essa instalação de feridas nefastas 
Roupas abandonadas, mofadas 
Sem corpos pra cobrir

Me contavam de um amor que não foi meu
Que se negava a ser
Que estava guardado ali
Esperando a dona chegar 

E eu plantava mais plantas
Planejava mais planos
Fingia que a indiferença era pro mundo todo
Não só pra mim 

Mas curandeira também dói
E um dia o curador teve que escolher
Entre um museu de memórias tristes
Ou um futuro de… quem sabe?

E dor o curador conhece
Ele dá vida a plantas verdes
Mas bebe o vinho espesso do passado 
Intoxicado, não vê o que já tem de bom na taça

Ah, eu tive que ir
Sob meu manto de cura eu escondi 
Mas o cheiro do passado me rasgava
O choro lavava o sangue

Da indiferença no olhar, um vergão
Das comparações, vários
E cada abraço de amor me repedaçava
Depois de despedaçar

Eu já não podia ficar
Do remédio de amor que eu dou 
Ele precisava tomar a cura sozinho 
E saber se queria se curar comigo pro resto da vida

Mas a diferença entre o remédio e o veneno 
É a dose 
Entre o gosto e o vício 
É o controle 

Eu flerto com a dor do fim
Nela, o curador se banha
Se lambuza, se reconhece
Ele só encontra fim onde eu dei recomeço 

Em sua abstinência, em copo negro, ele bebe o que conhece
Eu só fui logo ali pra chorar em paz 
Pra dar o espaço que ele pediu, pro desfecho
Pra ele decidir onde me cabe

  • - Se me deu abandono, que acabe

“Que museu eu já tenho um
Passado de dor eu já escolhi
E aquele é mais bonito
Pois fui eu quem escrevi”

Eu te pedi pra dizer adeus
Pro passado que te deixou 
Ou pro futuro que ofereço e você nega
É tão difícil escolher ser feliz?

A chuva lava a tensão com raiva 
A curandeira reza um terço no céu fechado 
No voo de suas asas, a santa atende 
Adiando o adeus

O tempo lava tudo, tudo
A chuva lava tudo, tudo
O mar, quem sabe…
Lava tudo, tudo

E marcamos o encontro onde foi o primeiro
Um dia e uma noite destilando a dor
Do ano mais feliz das nossas vidas
Tantas palavras não ditas, e se…

Tanto abraço e tanto choro
O peito que grita com dois corações 
Os filmes que não vimos, não fizemos 
Os filhos que já tem nome 

Por que você sabe dar tanto amor no adeus
E nega o pouco que precisei pra ficar?   

Como as plantas dentro de casa
Você tentou matar nosso amor por abandono
Não percebeu que de abandono 
Tanto quanto você entende de dor, eu entendo

Que criança que só ganha amor no Natal 
Vive um ano inteiro de sonhos de Papai Noel 
Come biscoitos imaginários
E vê neve onde só existe pó

Que até a planta que eu plantei
Sobreviveu à sua espera
Floresceu à sua procura
Mesmo sem água 

Mas eu não sei desistir
Nossas fotos marcam suas páginas
Na capa onde, pela última vez
Você escreveu que me ama 

As flores que você me deu sorriem 
De dentro de livros dos outros
E eu volto a escrever pra você
Sonhando um dia te olhar da estante

Eu quero esperar
Porque o seu desamor doeu
Mas seu abraço de manhã, fazendo café
Fez cada lágrima valer a pena

Eu espero o mesmo abraço, outro abraço
O seu sorriso simples
Dizendo, simples
“Eu só queria um amor simples”

Então, pra que complicar tudo
Se te amar foi a coisa mais fácil 
Mais natural que eu já fiz na vida? 
Foi como fechar os olhos e dormir 

Foi como respirar a brisa fresca no seu hálito quente 
Sentir o calor do mundo, testa com testa
O maior abraço da terra 
Com seu rosto no meu coração 

Você me cura de dores que eu não sabia que sentia
E nosso amor me fez contemplar
Um vazio tão grande em mim
Que coube esse texto

Mas nada é simples 
Nesse mundo de desejo e de falta

Comentários

Postagens mais visitadas