Minhas paredes

Minhas paredes eram brancas quando eu o conheci. Branco neve. Meus alisares negros ainda tinham o cheiro pungente da tinta. Ele levava o sorriso grande de quem chegou onde queria, eu era seu sonho de menino. Tinha ao seu lado outro sonho, um que carregava sorriso menor e um tom de voz grave de leve desprezo. Olhando outra vez, talvez, ela não sorria, apenas ria. Ria em seus pequenos sapatos condescendentes, do ranger das minhas madeiras idosas. Dele eu sentia o pulsar dos pés descalços, o coração desritmado, seu cheiro amadeirado e castanho de terra e plantas. Nos amamos de imediato e eu tão logo seria dele. 


Nossa lua de mel teve vinho, castanhas, risadas longas e breves. Ele alisava minhas paredes e dela a pele, brancas. Nos venerava. Estava onde queria estar. Estava em paz. Mas uma casa velha como eu sabe que a paz não dura. 


Observar os que vivem tem dor e doçura. Seus suspiros, sustos, gemidos. Seus cheiros, as mãos e costas em minhas paredes, os olhos brilhando de amor. Seus medos, consciências, dependências, carências. Tudo o que se pede e não se supre. Eu me basto em meus alicerces e decoro em meus alisares; para vivos, nada basta.


Eu gosto de pés. O toque dos pés é quando sinto meus vivos. Os pés dessa casa têm diferentes pesos. Uns me abraçam, o pisar quente e duro de gente da terra molhada; outros que bem raro me roçam, pés de beija-flor que me cheira, me bebe e se vai sem tocar, sem deixar rastro; pés de quem se acha anjo, de quem tem o poder de salvar o mundo e não usa. Tem diferentes mãos também, as calejadas que abraçam o verde e as frias que fazem gritar as dobradiças quando ela me bate as portas. No escuro, escuto o grito que ele sufoca. O esgar quando ela lhe suga o sangue, lhe parte o couro, lhe abre um rombo no peito.


Duas mãos, agora. Seguram um rosto que chora. Os joelhos que tremem. Um copo escuro. Um coração solitário que já não sabe mais dançar a própria música. Um sonho em pedaços que escorre dos dedos, se espalha pelo chão, derrama por minhas falhas no assoalho. Ele adormece no sofa quando, mesmo no calor, a cama é fria. 


Me pergunto se eu também errei. Se ela teria ficado se eu fosse mais jovem, mais limpa, mais fresca. Ao lembrar do ódio em seus pés, me pergunto: “Onde foi que eu errei?" Depois vejo mais um sonho ruir, e outro. Vejo voltarem as botas engraxadas que ele pensou que nunca mais tocariam seus pés, meu chão. Vejo cada dia mais livros, mais papéis, mais garrafas. Ele corre e os dias se atropelam. E de repente, vejo também as mulheres. 


Ah, as mulheres. Que bela distração! Em todas ele busca o que amou um dia, sem sucesso. Não se busca uma casa em outra e, em absoluta confusão, ele busca também outra casa. Eu tenho passado demais. Mas os vivos não entendem nada de casa e também não entendem nada dos vivos. As mulheres vêm e vão. Em meus cômodos vazios, não há espaço para elas. As lâmpadas estão acesas, mas não há luz.


Até que uma noite âmbar abre a porta e me traz, como um prisma atravessado pelo sol, um feixe de arco-íris.


Grandes olhos de gato entram tímidos e sei que a permissão para entrar foi pedida a mim, respeitosamente, e não a ele. Ele a quer aqui, claro, mas talvez eu tivesse outros planos. "Só quero meu menino feliz, minha filha.", respondo. Me perpassa uma brisa fresca em forma de arrepio quando a filha da lua ri, aquiescendo. Eu também, responde baixinho. Ela me vê por inteiro e eu a ela. Nos encantamos os três, nos despimos e eu os abraço em uma noite quente, esperançosa. A tanto ele não sorri. 


A bruxa tem medo da noite e de portas abertas. Ele ri, mas deixa uma luz acesa ao dormir. Digo a ela que não precisa temer, que não lhe desejo mal. Ela explica que não teme casas antigas nem fantasmas, mas que é na noite que o passado se esgueira por baixo da porta e a observa dos cantos, sussurrando seus defeitos aos ouvidos que dormem para que ele a deixe ao acordar. Olho mais atenta e sim, os dedos frios ainda marcam minhas paredes, escondidos sob roupas velhas, convites, bilhetes. São como marcas de cortes antigos que minhas portas velhas nem sempre encerram. Ao sair, pede que eu abra a porta para que ela volte. Eu entendo, uma bruxa só abre e fecha portas com a própria chave. Ele ri e abre. Tudo que ela diz e não faz sentido, ele ri.


Em um par de dias e para a minha surpresa, ele lhe entrega a chave. “De água as plantas” ele pede. Corajoso da parte dela aceitar, mesmo ciente de que seu amor demasiado sufoca e mata. Olhos arregalados, sabe que se o verde sumir, ela se vai no mesmo passe de mágica. Mas ela conversa comigo, com as plantas e com tudo mais que puder ouvir. Canta para nós, dança devagarinho. Nos conquista com seu jeito de menina. Dobra as roupas deixadas no varal, caminha na ponta dos pés e cheira cada um dos meus cômodos como um gato numa casa nova, a saia longa e negra esvoaçante acariciando minhas paredes. Observa os dedos nas paredes, lendo as lembranças. “Ciúmes?” Eu pergunto quando ela encara a promessa e suspira. “Pior, inveja. Ele não é meu para ter ciúmes, mas eu o quero ainda assim. É terrível desejar quem tem outra dona.” Bato uma porta, irritada. “Um filhote abandonado à própria sorte já não tem dono”, resmungo. Ela sorri com uma tristeza esperançosa e observo, ao cair da tarde, quando ela o recebe como o filhote que é, com comida e carinho. 


Passo cada vez mais tempo conversando com a bruxa enquanto ele dorme. Ela reconhece a dor do quarto abandonado e não tem medo dele, ou da dor. “Quem abraça a própria dor nunca se sente totalmente infeliz." - ela diz.

“Ele dorme abraçado à própria dor todos os dias a anos, isso tampouco o torna feliz.”

“Pois esse é o ponto. Eu só abraço a dor às vezes, pra me lembrar do seu cheiro e despertar a tempo caso apareça quando estou com os olhos fechados. Mas durmo abraçada em sonhos. São eles que levam a dor para longe. São eles que me dão coragem para estar aqui, forças para não ter pressa.”

“Agora ele dorme abraçado em ti.” - eu digo, percebendo a coroa de sonhos sobre os curtos cabelos brancos, onde antes só se via dor.

“Sim. E você vê, certo? Que ele já fala dela com a saudade de uma lembrança. Que a dor já deixa o sapato do lado de fora, não tem lugar na sapateira. Já sabe que fica pouco. Ele a deixa entrar, é verdade, mas só a abraça ao se despedir.”

“Sinto tristeza ao saber que ele vai me deixar” - confesso. “Sei que carrego o peso de um futuro que não veio, mas gostaria que ele fosse feliz aqui.”

“Ele foi feliz aqui.” Ela lembra. “Agora precisa ser livre.”

“Você já é livre. Ele busca caminhos definidos, isso não te assusta?”

“Eu busco amor. O resto é consequência. Quando ele entender, também vai ser livre para viver todo o resto. Até lá os móveis precisam ir para outro lugar. Você me ajuda?”

“Como uma casa pode ajudar uma bruxa?”

“Esconda o que eu não quero ver de forma que só ele encontre.”


E lá fui eu vasculhar meus armários, abrir portas em silêncio e organizar prateleiras, caixas. Os homens vieram e levaram tudo. Fiquei só eu e minhas pequenas relíquias, os anéis e os dedos, uns retratos. Como planejado, ele encontrou meus guardados. Ensaiou um teatro de descarte, comédia para minha bruxa e eu. Sabemos que ele não está pronto, mas há beleza em ver que quer estar. 


Fico vazia por muito tempo e ele me ignora, finge que não existo. Minhas portas abandonadas batem ao vento fraco e me irrito com as plantas largadas sem água, folhas secas de tamarindo dançando em pequenos redemoinhos. A bruxa olha para a minha varanda todos os dias, como quem se desculpa. Um dia o traz, quase arrastado escada acima, com uma grande lata de tinta. Branco Neve, leio na embalagem. Ele quer deixar para depois, para nunca mais, ela quer e quer agora. Que sorte temos, ele e eu, por fazer parte de sua teimosia.


Ela começa pelo quarto abandonado. Não digo, mas ela sente, que lá ficaram as malas. Lá se escondiam os planos de fuga. E lá também se chorava escondido. Mas cada carícia do rolo de lã trazia cores vibrantes e vontades de futuro que há muito já nem me passavam pelas teias de aranha do teto.


Em seguida o quarto dos livros, dos terríveis uniformes, tão claro, mas que escondia corações e desenhos, diversas camadas de tinta abaixo de onde o sol toca, que a umidade revelava brevemente. 


Depois, finalmente, o quarto de paredes amareladas pelo uso e pelo tempo onde o amor nasceu e morreu, onde as lágrimas verteram um rio que escorreu pelas paredes. Com olhos de menina e teimosia de mulher, a bruxa esticou seu rolo branco e pintou tudo de arco-íris. Ao ver meu passado sumindo, me enfureci.

“Você não sente raiva nem mesmo aqui? Nesse quarto morou o amor que ele não te dá. Que talvez nunca dê.”

“Eu não quero esse amor, quero outro, um só meu. O que dou é só dele.”

“As marcas de mãos nas paredes não são as suas, é justo que seja o seu suor que as lave?”

“Minhas mãos sempre estão ocupadas com carícias, não com paredes”

“Os dedos de tinta no quadro não são seus.”

“Meus dedos estão tecendo sonhos, escrevendo versos, criando universos. Preciso deles limpos.

“Mas e a promessa? Ele ainda guarda a promessa?” perguntei, e para meu cruel deleite, ela parou por um momento, olhou com pesar para cada parte de mim e respondeu com olhos marejados .

“Sim, ele guarda seus pedaços. Pois sentiu o sangue escorrer da garganta cortada. O golpe traído de dez facas no coração. E pior, viu morrer diante de seus olhos a mãe e o pai que ele pensou que seriam. Ele guarda a promessa, não como uma a ser cumprida, mas como um troféu. Apesar da promessa quebrada, o sonho da felicidade vive.”

“E você pretende ser a felicidade dele?”

“Não. Pretendo ser a minha e que ele seja a própria. Mas que seria bom se nossas felicidades dessem as mãos e seguissem juntas, ah… seria. Para alegrar suas memórias, lembre-se que se ela foi a história, eu sou o final feliz."


Me calo. É impossível vencer um otimista e um idiota em uma discussão. Em qual dos dois ela se aplica, apenas o tempo vai dizer. De forma irônica, me pego torcendo para que essa resposta venha daqui a muito tempo, depois de minhas velhas paredes descascarem, minhas colunas cederem e eu ter sido substituída por um elegante complexo de minúsculos apartamentos construídos de maneira funcional para uma classe média sem grandes paixões. Sem pisos de madeira, taças de vinho e beijos ao som de Elis.


Ela termina seu trabalho colorido em branco neve e lava os pincéis. Cômodo a cômodo, vou me despedindo do passado.


A bruxa pinta minhas paredes como se fossem suas. De hoje em diante, são suas. Quando ele chega com flores, não me importo que ele ande de botas e a levante em um abraço como se fosse sua. Ela é sua.


E eu, com minhas paredes brancas e meu velho piso de madeira, também sorri ao dizer adeus.


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